quinta-feira, 17 de julho de 2014

LÂMINA SUSPENSA NO AR - poema de Laura Esteves


LÂMINA SUSPENSA NO AR
                               
Naquele fim de tarde, eu tive medo.

Algo sério acontecia ao meu país, a meus ideais.

E eu só tinha vinte anos.

Peguei uma escova de dentes, algumas peças de roupa,

beijei minha mãe aflita, escrevi bilhete pro pai:

"Volto logo, não vai durar,

estarei em lugar seguro.

Não se preocupe,

não venha me procurar".

Nunca retornei.

Mas os homens fardados apareceram, num instante:

perguntaram, vasculharam,

rasgaram os meus livros, derrubaram a estante.

Minha mãe envelheceu dez anos,

meu pai também, e num segundo.

Vivo com a sensação de que lhes roubei alguma coisa

e que, por minha causa,

foram embora mais cedo deste mundo.

Madrugada escura, abracei meus pais às escondidas: o reencontro.

Casal e filha prontos para o exílio, a partida.

No peito um estranho sentimento,

como se eu devesse algo àquela casa de subúrbio,

que não assistiu ao meu casamento

e ao primeiro banho de minha menina.

64! Lâmina cruel, corte em minha vida,

desvio em minha sina.

     Laura Esteves
 ( Como água que brota na fonte/ Editora Barcarola )
               
                       
                                       

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